1. O Sistema Político Suíço: Referendos

Martin Sustrik

Written in Portuguese.

Este artigo é uma adaptação de Swiss Political System: More than You ever Wanted to Know (I.) de Martin Sustrik, publicado a 18 de Julho de 2020, feita com a permissão do autor. Qualquer diferença entre este texto e o original é exclusivamente da minha responsabilidade.

Votação por contraste no cantão Glarus. Foto de Marc Schlumpf.
Votação por contraste no cantão Glarus. Foto de Marc Schlumpf. CC BY-SA 3.0

O sistema político suíço é conhecido pela utilização frequente que faz de referendos. Há quem argumente, no entanto, que a sua particularidade mais notável é a capacidade de evitar a polarização política. Neste aspecto a Suíça, é, provavelmente, única entre as democracias ocidentais.

Dito isto, é difícil para um estrangeiro entender como é que o sistema funciona. Primeiro, grande parte deste é informal e só é possível defini-lo observando em pessoa ou questionando os locais. Segundo, é descentralizado. Cantões e municipalidades diferentes usam regras diferentes o que torna o tópico mais complicado de explorar. Terceiro, os suíços não estão especialmente interessados em promover o seu sistema governativo lá fora. Muitos recursos só existem, portanto, nas línguas nativas ao país.

Uma democracia semi-directa

A Suíça, tal como existe hoje, foi estabelecida em 1848 como uma democracia representativa inspirada no modelo americano.

É uma república federal, tal como os Estados Unidos e o Brasil. Os mandatos dos membros do parlamento federal têm a duração de quatro anos. Findos estes, são convocadas eleições. Os cidadãos são representados por partidos políticos. O parlamento é bicameral e elege os membros do governo. Juntos, o parlamento e o governo administram o país.

Aos estados membros integrantes da federação chamam-se cantões. Estes gozam de autonomia significativa, tendo o seu próprio conjunto de leis. Os cantões, por sua vez, estão divididos em municipalidades que, dependendo do cantão, podem também gozar de bastante autonomia.

O que torna a Suíça especial é que, ao longo da sua história, vários elementos da democracia directa foram sendo introduzidos no seu sistema político.

Há referendos obrigatórios. Qualquer alteração à constituição, aos impostos ou adesão a uma organização internacional tem que ser aprovada pelos eleitores. Há referendos legislativos. Qualquer lei aprovada pelo parlamento pode ser contestada e rejeitada num referendo. Há as chamadas “iniciativas populares”, em que qualquer eleitor pode propor um referendo sobre qualquer tópico. Se a iniciativa obtiver um determinado número de assinaturas num determinado intervalo de tempo, um referendo é organizado e é possível que a iniciativa seja promulgada. Todos estes referendos existem não só ao nível federal mas também cantonal e municipal. O resultado destes referendos é sempre vinculativo e nunca é necessário um quórum.

Para percebemos a escala da operação, consideremos que um Suíço que tenha atingido a maioridade em 2000 teve, de 2000 a 2020, a oportunidade de participar em 548 referendos, 181 dos quais federais, 176 cantonais e 191 municipais. Com uma abstenção média de 55%, isto significa que exerceu o direito de voto em, aproximadamente, 246 referendos.

Dado o elevado número de referendos, estes não são usualmente organizados de forma separada. Os referendos são agrupados e há tipicamente 4 momentos de voto por ano.

A título de exemplo, vejamos um lote em que um habitante de Zurique teve a oportunidade de votar em Fevereiro de 2020:

O cantão publica um manual em cada momento de voto que explica a temática do referendo.

Consideremos o projecto do túnel Rosengarten. O manual dedica oito páginas a explicar o projecto, incluindo tópicos como o impacto no trânsito do cantão, o impacto ambiental, e uma explicação detalhada do plano de financiamento do projecto. Indica que ambos o governo cantonal e o parlamento recomendam votar a favor da proposta. A isto segue-se a opinião da minoria no governo cantonal onde esta argumenta que os custos são demasiado elevados, que a contribuição por parte do governo federal é incerta e que, na verdade, o projecto não resolve o problema que indica resolver. Recomendam votar contra. Na próxima página consta a opinião do parlamento da cidade de Zurique. Estes declaram-se, em termos que não deixam dúvida, contra o projecto. Por fim, surge a opinião da comissão do referendo que, como seria de esperar, argumenta contra a execução do projecto.

Mesmo que este guia eleitoral não seja suficiente, um eleitor pode sempre consultar os sites dos votos a favor e contra. Enquanto que o site do voto contra é relativamente minimalista, o site a favor tem uma longa lista de apoiantes. Para além de quase todos os partidos políticos, várias associações não governamentais: O Clube Automóvel, a Associação para a Promoção dos Transportes Públicos, a Associação de Empregadores, a Associação de Empresas de Construção do Cantão de Schaffhausen, a Associação de Pequenas e Médias Empresas, a Associação de Proprietários, o Clube de Viagens Suiço, a Câmara do Comércio de Zurique entre outras. Várias destas associações publicaram também a sua análise do projecto.

Aos votantes não lhes é dada uma escolha sim/não que trai a complexidade do assunto. É-lhes exposta uma teia de diferentes preferências. O seu partido é a favor mas os elementos da sua municipalidade são contra. É membro do clube automóvel e o clube é a favor. Mas os seus amigos e conhecidos são decididamente contra.

Participar nos referendos requer, inquestionavelmente, o entendimento de que não há uma resposta nem simples nem certa.

Referendos constitucionais

Quaisquer alterações à constituição têm de ser aprovadas pelos cidadãos através de um referendo. Não há alternativa. A maioria dos votantes e dos cantões têm que ser a favor da alteração para esta entrar em vigor. Ponto final. (Para clarificar: um cantão é considerado a favor se a maioria dos votos dos cantonenses forem a favor.)

Esta regra, por si só, já parece razoável mas é uma peça fundamental que complementa todo o sistema político: os resultados das iniciativas populares são escritos na constituição. Isto quer dizer, portanto, que só podem ser revertidos através de um novo referendo.

Assim sendo, a Suíça não tem tribunal constitucional. O direito de interpretar a constituição pertence apenas aos cidadãos. Se estes determinarem que, em qualquer parte, a constituição é ambígua, podem organizar um referendo com intenção de escrever as frases em questão de forma mais clara.

Em suma, o sistema é desenhado de forma a que torne impossível a existência de furos legais. Não há forma de desrespeitar a vontade colectiva dos suíços.

Foi sugerido pela imprensa no pós-Brexit que uma das opções do governo de Boris Johnson seria a de adiar constantemente a data de saída do Reino Unido da União Europeia, com a intenção de que esta nunca, efectivamente, se materializasse e, claro, desrespeitando a vontade da maioria dos votantes. Este cenário, num estado como a Suíça, seria improvável.

Para além de serem necessários referendos para alterações constitucionais, estes são também obrigatórios na adesão a organizações internacionais. Foi assim que a Suíça decidiu não se juntar ao Espaço Económico Europeu em 1992 mas aderir ao Espaço Schengen em 2005. E que decidiu não integrar as Nações Unidas em 1986 mas, novamente, juntar-se em 2002. (É interessante reparar que o Palácio das Nações, o quartel general das Nações Unidas, é situado em Genebra e que sempre assim foi, muito antes da própria Suíça se tornar membro.)

Referendos legislativos

Os referendos legislativos são os que recebem menos atenção mas o mais certo é que sejam os mais importantes dos três tipos. Ao contrário dos referendos constitucionais e iniciativas populares, que tendem a focar-se em temas de grande envergadura, os referendos legislativos podem contestar e rejeitar qualquer lei, não interessa o quão trivial, promulgada pelo parlamento.

Esta regra actua como um potente fiscalizador das decisões no dia-a-dia do parlamento e do governo. Citando a Wikipedia [traduzido do inglês]:

A possibilidade dos cidadãos contestarem qualquer lei influencia todo o sistema político. Encoraja os partidos a formar governos de coligação para minimizar o risco de que um outro partido importante bloqueie as acções do governo propondo, sistematicamente, referendos. Dá legitimidade às decisões políticas. Força as autoridades a ouvirem todos os parceiros sociais, para minimizar o risco destes rejeitarem as leis em referendos. Antes de apresentar uma proposta de lei ao parlamento, o governo federal, normalmente, consulta todos os interessados de forma a garantir que nenhum deles é diametralmente oposto à proposta e disposto a convocar um referendo.

Para evitar a polarização política e os extremos, afastar a arbitrariedade na tomada de decisões e garantir uma governação por consenso os referendos legislativos são, provavelmente, a ferramenta central, neste sistema político.

Iniciativas populares

As iniciativas populares são uma forma de alterar arbitrariamente a constituição.

Se uma iniciativa recolher cem mil assinaturas num ano e meio, é levada a votos num referendo. O resultado do referendo é vinculativo – nem o parlamento, governo ou qualquer outra entidade o pode alterar – e não é necessário um quórum. Se 1% apenas da população votar no referendo e apenas 0.51% dos votos forem a favor da proposta, esta é promulgada e implementada.

Os tópicos sobre os quais as iniciativas populares podem incidir não têm qualquer restrição. Em alguns países, como Portugal, que contemplam um instrumento legal semelhante nas suas constituições, os tópicos sobre o qual o referendo pode incidir são restringidos. Pode não ser possível convocar um referendo sobre os direitos humanos ou sobre os impostos em Portugal mas, na Suíça, todos os tópicos são válidos.

Para percebermos melhor sobre o que é que consiste uma iniciativa popular, consideremos uma pequena amostra destas. As iniciativas populares que se seguem ocorreram ao nível federal e foram votadas no período eleitoral de 2015-2019:

Há também iniciativas populares de menor escala, desenvolvidas ao nível cantonal ou municipal. Nos últimos anos, os votantes de Zurique tiveram a oportunidade de se expressar na:

Todas estas iniciativas foram rejeitadas.

Mas a iniciativa popular nem sempre foi o instrumento plenipotenciário que existe nos dias de hoje.

Quando a Suíça moderna foi fundada em 1848, existia uma cláusula na constituição que indicava que os suíços podiam alterar a própria constituição. Esta cláusula era geralmente interpretada como indicando que a constituição apenas podia ser substituída, na sua íntegra, por outra. Só quando esta interpretação mudou é que a iniciativa popular pôde ser estabelecida em 1891.

O gráfico seguinte mostra o número de iniciativas populares a azul e, destas, as aprovadas a vermelho. Observamos que estas foram muito pouco utilizadas durante décadas após a sua génese e que a sua utilização só aumentou consideravelmente nos anos 70.

Iniciativas populares, de 1890 a 2019, e o resultado da sua votação.
Iniciativas populares, de 1890 a 2019, e o resultado da sua votação.

Este facto não é por acaso. Só nesta altura é que as iniciativas populares começaram a funcionar como devido.

Pouco depois da génese deste instrumento, estabeleceu-se o costume de “arrumar na gaveta”. As novas iniciativas eram simplesmente deixadas no vácuo, sem referendo, até serem esquecidas ou terem perdido toda a sua relevância política. Houve uma que foi de tal forma esquecida que só foi cancelada após ter passado 43 anos no esquecimento.

Eventualmente, e após sucessivas e duras críticas na imprensa, o governo desistiu desta prática.

Mas não sem arranjar outro truque. A próxima estratégia do governo foi a de produzir sempre uma contra-proposta a uma iniciativa popular e, assim, dividir os seus apoiantes. Se uma iniciativa popular tinha a aprovação da maioria, a contra-proposta fracturava-a fazendo com que nem a proposta original nem a contra-proposta fossem aprovadas.

Este problema foi solucionado em 1987 quando o denominado “duplo-sim” foi introduzido, tornando possível um voto a favor em ambas a proposta original e a contra-proposta do governo. Uma questão adicional foi também introduzida em ambos os referendos perguntando qual das propostas teria o apoio final do votante caso ambas fossem aprovadas.

Depois, surgiu ainda o problema da validade do referendo.

A constituição Suíça não limita o âmbito do referendo de forma alguma. O único requisito que faz é que o conteúdo do referendo seja coerente. Na prática, isto significa que o votante nunca se deve ver numa situação em que seja forçado a responder sim ou não a uma questão que misture temas não relacionados. Por exemplo: “Aprova o aumento do mandato presidencial em 10 anos e o ajuste das pensões do estado de acordo com a inflação?”

Portanto, uma iniciativa popular que sugerisse uma redução do orçamento militar e que esse capital fosse, ao invés, utilizado para fins sociais era cancelada. Sendo a justificação para o cancelamento de que o financiamento do sector militar e o do social são dois assuntos distintos e que não podem ser juntos num referendo.

Este argumento parece razoável. Mas pode observar-se que as alterações à constituição iniciadas pelo parlamento cometem exactamente este erro, e alteram várias partes diferentes desta. Esta situação ainda hoje não foi regularizada e é, certamente, uma das principais falhas do sistema.

Finalmente, há ainda o problema de consistência de propostas relativas a tratados internacionais.

O primeira ocorrência deste problema manifestou-se num contrato, estabelecido entre a Suíça e a Alemanha, que contemplava a construção de uma central hidroeléctrica em Rheinau, na fronteira entre os dois estados. Neste contrato, ambas as nações concordaram que a concessão da central não poderia ser unilateralmente cancelada. Quando o governo Suíço, em 1954, permitiu uma iniciativa popular que favorecia a abolição da central eléctrica, levantou-se a questão do que realmente aconteceria se o resultado do referendo contradissesse o compromisso internacional estabelecido.

A iniciativa contra a central eléctrica fracassou e o governo respirou de alívio mas, mais recentemente, outras iniciativas com este problema embaraçoso tiveram sucesso.

Uma delas foi a iniciativa contra a expulsão automática de criminosos estrangeiros em 2010. Como o resultado do referendo nunca foi posto em prática em 2018, o autor da iniciativa original (o Partido Popular Suíço) concebeu uma iniciativa diferente que propunha que a constituição suíça – e como tal os resultados das iniciativas populares – tenha sempre precedência, ficando a lei internacional em segundo lugar – com excepção dos tratados internacionais aprovados em referendo.

Se um referendo fosse aprovado, a Suíça poderia, a qualquer altura, revogar uma obrigação internacional em efeito. Inevitavelmente, isto levaria a uma quebra de confiança. Seria um golpe brutal para a economia Suíça, muito dependente das exportações.

Os cidadãos votaram contra o referendo mas o problema mantém-se por resolver. Podemos apenas tentar adivinhar o que é que vai acontecer. Talvez um dia todos os tratados internacionais sejam levados a referendo para tornar a sua legitimidade inquestionável. Mas mesmo isto não resolverá o problema dos tratados internacionais já em vigor.

Outro problema sério e de difícil resolução é-nos introduzido através da iniciativa popular “Contra a Imigração em Massa”.

Na Suíça, um quarto da população não tem cidadania suíça. Em cantões como Zurique ou Genebra, a proporção de estrangeiros é ainda mais alta. Há muitos imigrantes de terceira geração que ainda hoje não têm passaporte suíço.

Este fenómeno começou finda a Segunda Guerra Mundial quando a Suíça, poupada pela guerra, se tornou um país muito atraente para o qual emigrar. As pessoas de vários países começaram a entrar, o que causou tensão política, evidenciado pelo facto de não menos de sete referendos contra a imigração terem sido levados a votos entre 1968 e 2000. Como Max Firsch uma vez reparou: “Pedimos trabalhadores mas vieram pessoas.”

O número de imigrantes é hoje tão alto que não são só os xenófobos que perdem sono. Conservadores mais tradicionais estão também preocupados: É possível preservar a cultura política e comunal com tantos estrangeiros? Os liberais também: Pode um país em que um quarto da população não tem o direito de voto ser considerado uma democracia?

Na segunda metade do século 20, todos os referendos anti-imigração foram rejeitados – o seu apoio variou entre os 29.5% e os 46.3%. Mas a iniciativa “Contra a Imigração em Massa” foi aprovada em 2015, com 50.33% dos votos a favor. Pedia o estabelecimento de quotas para a imigração que “se alinhem com os interesses económicos da Suíça e favoreçam os cidadãos suíços.”

O governo, num comunicado, anuncia que agirá celeremente e que aprovará toda a legislação necessária antes do final do ano. Uma semana após o referendo, o ministro da justiça suíço liga à ministra croata dos negócios estrangeiros e informa-a de que a Suíça não vai assinar o acordo que dá à Croácia – na altura um novo membro da UE – acesso livre ao mercado de trabalho suíço.

A Comissão Europeia responde que não é possível escolher as liberdades que se prefere do tratado e que esta restrição colocará em questão o acesso por parte da Suíça ao mercado único europeu. Bruxelas suspende de imediato diálogos de cooperação na esfera da educação (projecto Erasmus+ com um orçamento de 14.7 mil milhões de euros para os próximos seis anos), ciência (programa Horizonte 2020, 80 mil milhões de euros para o mesmo período) e integração do mercado de energia suíço no mercado europeu.

As universidades estimam prejuízos, em bolsas de investigação, na ordem das centenas de milhões de euros. O próprio governo estima que a exclusão do programa Horizonte 2020 eliminará 8000 postos de trabalho. São esperados aumentos nos preços de electricidade. A união de estudantes protesta porque os alunos, de um momento para o outro, não sabem se podem começar o seu programa de intercâmbio. O Credit Suisse baixa a previsão do crescimento da economia suíça de 1.9% para 1.6% e calcula que menos 80 000 postos de trabalho sejam criados.

O governo vê-se entre a espada e a parede. Passados três anos, poucos meses antes da data limite para a implementação do referendo, o governo abandona a ideia de quotas de imigração e limita-se a implementar uns poucos e ténues obstáculos burocráticos à contratação de cidadãos europeus.

O país vê-se numa peculiar situação em que a lei contradiz a constituição – recordemos que os resultados dos referendos são escritos na constituição. Ao mesmo tempo, a Suíça não tem um tribunal constitucional para rejeitar estas leis (inconstitucionais). Apenas os cidadãos podem interpretar a constituição através de um referendo.

Esta é uma situação preocupante para os suíços. A sistema suíço de democracia directa baseia-se na alteração da constituição por parte dos votantes e na subsequente implementação dessas alterações, pelo governo, na lei. Se o governo passa a desconsiderar a constituição, o sistema colapsa. As pessoas podem votar no que bem entenderem que não produz qualquer efeito. (Podem, em teoria, contestar leis inconstitucionais em referendos legislativos mas interpretar centenas de páginas de legalês é inviável para o cidadão suíço comum. Não há, para além disso, nenhuma ferramenta legal que permita contestar uma lei após esta estar em efeito por 100 dias ou de legislar por via de um referendo.)

(Para sermos justos, um tipo novo de iniciativa, a chamada “iniciativa popular geral”, foi introduzida pelo governo em 2003 com o propósito de permitir a alteração da lei federal. Foi aprovada em referendo (70.3% a favor) mas eventualmente verificou-se que muitos votantes não faziam ideia do que se tratava. Aliás, o próprio governo também não. Quando tentaram implementá-la descobriram que havia tantas complicações que não era de todo viável. Em 2008 propuseram que o novo tipo de iniciativa fosse removido da constituição e as pessoas aprovaram – 67.9% a favor.)

Em todo o caso, a história termina com um Partido Popular Suíço extremamente indignado mas a anunciar que não irá contestar a decisão do governo num novo referendo. Em vez disso, opta por contestar o resultado indirectamente com um nova iniciativa que, mais uma vez, pede a precedência da lei suíça – e consequentemente o resultado da iniciativa anti-emigração em massa – em detrimento da lei internacional – sobre a livre circulação de pessoas na UE. A iniciativa é rejeitada em referendo.

Lagarta europeia a comer a maça suíça. Poster eleitoral do Partido Popular Suíço (2019)
Lagarta europeia a comer a maça suíça. Poster eleitoral do Partido Popular Suíço (2019)

Mas a história não termina aqui. Em 2018 é iniciada a recolha de assinaturas para um novo referendo. A proposta propõe que o governo negoceie com a UE uma remoção das cláusulas de livre circulação dos vários tratados e, se não for possível chegar a um acordo, que Suíça entre em incumprimento. O referendo estava marcado para Maio de 2020 mas foi adiado por causa da pandemia. As previsões indicam que o mais provável é que o referendo seja rejeitado e que o problema da discrepância entre a constituição e a legislação persista.

Concluindo, é importante reparar que a discussão política tem adquirido nuance. No século 19, o diálogo era sobre se uma iniciativa popular podia, sequer, introduzir uma alteração parcial na constituição. Depois, vemos o governo abertamente a sabotar esta ferramenta democrática. Hoje, 130 anos depois da sua introdução, os suíços estão finalmente a tentar resolver os problemas que a utilização da iniciativa popular traz.

Os referendos em Portugal

Em Portugal, também existe a noção legal de referendo. No entanto, esta tem um âmbito muito mais reduzido que na Suíça.

É possível aos cidadãos submeterem uma proposta de referendo à Assembleia da República. Esta tem, depois, de dar a sua aprovação. Esta dada, é ainda necessária a aprovação do Presidente da República.

Mesmo que se dê o referendo, o resultado deste só é vinculativo se a participação por parte dos votantes elegíveis for superior a 50%. Tendo em conta que em qualquer democracia ocidental os níveis de abstenção se tendem a aproximar exactamente dos 50%, a vinculação é improvável. Dos três referendos realizados em Portugal até à data, nenhum chegou a esta meta.

Igualmente debilitante para o referendo é o facto de que, citando a constituição:

São excluídas do âmbito do referendo:

a) As alterações à Constituição;

b) As questões e os actos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro;

Resumindo, é incerto que o referendos se realizem, muito pouco provável que o resultado destes seja vinculativo e, logo à partida, temáticas nucleares são barradas.

Isto inviabiliza o referendo como ferramenta de tomada de decisão por parte dos votantes no que são, provavelmente, as questões de maior relevância nacional.